quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Avenida Liberdade #4

Gritos e mais gritos, bem vindo a minha vizinhança. Aqui na Avenida Liberdade tudo tem um quê de arrependimento. Viúvos choram a traição, presos amontoados vêem as lágrimas nos olhos de filhos, esposas e mães. As meninas do cabaré, entre um cliente e outro, reclamam de suas condições.

O tempo todo, minha vizinha, dona Celina, grita com o esposo. Bem na porta da frente, dá pra ouvir os copos quebrando na parede. Todo dia, ou quase todo, é a mesma coisa, por volta das duas da madrugada, seu Geraldo bate na porta. Ele está tão bêbado que não consegue abri-la, algumas vezes, quando preciso acordar cedo, eu o encontro deitado no corredor.

Lembro que conheci os dois há uns três anos, quando eles se mudaram pra cá. Fiquei sabendo depois que dona Celina tinha descoberto uma das amantes do marido, e o obrigou a mudar. O que ela não sabia, ou melhor, não queria acreditar, era que ele arrumaria outras por aqui. Você deve estar pensando em seu Geraldo como um coroa garboso, cheio de charme. Gorducho, meio careca, com um bigode a la Nietzsche, troca algumas palavras e não faz um plural. Sempre com a mesma calça azul de brim e uma camisa aberta até a metade do peito.

Seu Geraldo era meu camarada de farras até o cabaré fechar, apesar dos seus quase sessenta, só gostava de meninas novinhas, dizia que não importava a “buniteza”, se fosse novinha, e novinha pra ele era tudo com menos de vinte anos, ele queria.

No começo dona Celina não gostava de mim, ela admitiu um dia desses, dizia que eu levava o Docinho dela pro mau caminho da bebida, dos jogos e das mulheres. Até parece, um moleque como eu querendo ensinar sobre putaria para um profissional do negócio.

A verdade é que o coroa gostava de mim porque eu mentia por ele, que mal conseguia falar quando chegávamos das farras. Sempre era uma história diferente, nunca íamos pro cabaré, por exemplo, sempre tinha um baile, ou um sarau nas redondezas. A culpa da bebedeira nunca era dele, era sempre de um amigo meu, do garçom que era gente boa. Acho que a convivência com aqueles dois aprimoraram meu modo de mentir.

Dona Celina me trata, até hoje, como um filho. Cozinha pra mim, passa certinho minhas camisas quando eu tinha uma reunião importante. Acho que é porque os dois filhos dela estão na Avenida Liberdade, João Antônio, o mais velho, o que fez faculdade e que tinha um futuro brilhante, segundo a mãe, no cemitério. João Pedro, o mais novo, mais esperto e mulherengo, segundo o pai, meteu-se com quem não devia e está no Presídio cumprindo doze anos por tráfico e homicídio.

Toda família tem um ritual, seja orar à mesa, seja se reunir nos sábados para um churrasco, até eu que vivo só tenho meu ritual de uísque barato e cigarros na janela, e aquela família não podia ser diferente. O único dia que seu Geraldo nunca bebe é na quarta, porque na quinta, bem cedinho, ele sai com a mulher. Veste-se com calça marrom e camisa abotoada, passa na padaria – sempre compra uma saco grande de bolacha maragogi, uma manteiga, doce de goiaba e um pacote de cigarros – e desce a avenida até a Penitenciária. Vão ver o filho, dona Celina leva umas revistas de mulher pelada e um livro, normalmente é de auto-ajuda, mas pelo menos é alguma coisa.

Na volta, pouco depois do meio-dia, eu os vejo andando de mãos dadas pelas calçadas irregulares da Avenida Liberdade, entrando no cemitério, sempre com flores, ainda não sei ao certo, mas acho que são girassóis. Cerca de meia hora depois eles saem e almoçam num prato-feito aqui em baixo do prédio. É nessas horas que eu tenho orgulho de meus vizinhos. João Antônio morreu há sete ou oito anos e todas as quintas-feiras, desde que eles estão aqui recebeu flores. João Pedro está preso tem uns quatro anos e sempre ganha do pai suas preciosas bolachas maragogi, goiabada e dinheiro de cadeia, cigarros.

Tento pensar que o caso do marido tenha sido apenas a desculpa que dona Celina precisava para ir para mais perto dos filhos. Posso estar enganado, mas ela representa o amor incondicional de mãe, pelo filho morto e pelo filho preso.

Um comentário:

Anônimo disse...

poo diego
também quero uns girassóis....
tás escrevendo cada vez melhor.....é um gênio!
bjus te amo