terça-feira, 1 de janeiro de 2008

Avenida Liberdade #1

Antes de mais nada quero avisar que não estou escrevendo para você gostar de mim. Seria muito fácil dizer de como sou honesto, fiel, como acordo bem humorado, sonho em plantar árvores e fazer um mundo melhor.


Na verdade estou escrevendo para você me odiar. Odiar o modo fácil como eu conto uma mentira, como eu não respeito os sentimentos dos outros, como eu estou pouco me fudendo para as coisas belas da vida. Claro que eu gosto das coisas belas da vida, mas sei que elas não passam de engodos para algum idiota escrever livros de auto-ajuda.

Eu aceitei que o mundo é escroto, que as pessoas não são boas e as histórias, normalmente, não tem um final feliz. Antes que venham me julgar olhem para si mesmos, para suas vidas, suas coleções de vícios. Fiquem com os seus, eu me divirto com os meus.

Gosto de me sentar – por volta do meio-dia – bem de frente para a minha janela, deixar o gelo derreter no uísque barato junto com o calor que sobe do asfalto. Deixo o Sol, refletido nos carros e nos túmulos do cemitério do outro lado da rua, iluminar o rosto. Hoje teve dois enterros pela manhã. São poucos, a julgar que é uma segunda-feira e é no fim de semana que eles nos deixam, ou são tomados de nós. Bela humanidade que se mata por duas notas de vinte, uma carteira de cigarros ou cinco gramas de pó.

É hora de almoço, os trabalhadores estão voltando pra suas casas, o mormaço sufoca os pedestres que tentam cruzar o farol quebrado em frente à Penitenciária. É bater a cinza do cigarro e observar - dar tragos longos do uísque dissolvido em água - a sutil e cínica representação do mundo sobre ele mesmo.

Bem aqui, onde eu me escondo, na mais cínica das ruas, a Avenida Liberdade, que começa numa cadeia e termina num cemitério. Retrato irônico de nossas desavenças, do mundo incoerente que vivemos. Acho que é por isso que não saio desse apartamento quente e minúsculo, onde meus livros têm que ser empilhados e de minha cama tenho uma bela vista do banheiro onde a água escorre do chuveiro deixando o verde musgo colorir a parede de azulejos brancos, um dia eles foram brancos, garanto.

Acontece que a Liberdade vai além do cemitério e da penitenciária, tem uma praça mal cuidada e um velho teatro, quando digo velho é desses quase centenários, que a cada quatro anos um político usa para tentar ganhar votos prometendo sua revitalização. O que sei é que até uns sete meses atrás ali funcionava um Cabaret. A fachada e os móveis estavam meio gastos, e as meninas não eram lá essas coisas, mas tinha boa música e bebida barata.

Não gosto de comentar muito, mas eu amo essa Avenida, amo suas mentiras, amo seu lado cínico. Eu amo a liberdade de estar condenado a viver aqui. De ouvir a vizinha gritar, de saber que duas casas adiante é ponto de tráfico, que na frente da minha janela, onde o gelo derrete e as cinzas são batidas existem dores maiores que as minhas.

*Avenida Liberdade é um lugar fictício. Com pessoas virtuais. Onde minhas mentiras se tornam reais, e a realidade mente.

Nenhum comentário: