terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Avenida Liberdade #3

O que é a vida? Seria mais fácil responder: uma coleção de vícios e decepções, e este seria meu lado ultra-romântico, mal-do-século, pessimista e quase psicótico falando. A vida são os pequenos e belos momentos que ela nos proporciona, eu diria: cala-te escritor de livros de auto-ajuda, daqueles bem bregas com fotos de criancinhas loiras de olhos azuis, ou filhotes de cães insuportáveis fazendo coisas estúpidas. Chega uma hora que, definitivamente, a vida é. Ponto. Não tente explicar, não tente entender, não me venha com mil teoremas de velhos gagás e mal amados, também conhecidos como filósofos. A vida é.

É desta forma que minha vida tem sido, pelo menos, uma seqüência irresponsável de atos, momentos e reações. Devo admitir que, hoje, acho a vida uma coisa legal, mas nem sempre foi assim. A vontade que tenho é de dizer como minha infância foi infeliz e sofrida, como as coisas nunca davam certo lá em casa, meu era um bêbado e minha mãe, minha mãe, uma meretriz de lábios pintados e sorriso fácil. Não foi nada assim. Meus pais morreram quando eu tinha uns seis anos e estão enterrados no cemitério do outro lado da rua. Eu fui criado por uma irmã do meu pai e seu marido impotente e rico, estudei em escolas caras, sempre tive tudo que quis.

Minha tia tinha pena de mim, eu acho, porque nunca me disse não, nunca me deu limites, nunca me cobrou nada. Meus colegas de classe, todos riquinhos e metidos a besta, eu falo isso hoje, mas era igual a eles naquela época, pouco me importava se estavam sacaneando o preto, pobre, filho do zelador, apenas por ele ser preto, pobre e filho de zelador.

Não me importa com o que era dado nas aulas, na verdade, todo dia eu matava uma e quando me pegavam era só pedir pra minha tia assinar a advertência. Meu colégio tinha nome de santo, era coordenado por padres, mas todas as meninas eram umas putas. Pelo menos, na época, eu pensava assim. Não era difícil para um ser medíocre, escravo do dinheiro e da popularidade, que nunca precisou de nada e sempre se deu bem com as meninas mais desejadas do colégio dizer isso. Dormi com muita, gostei de poucas e não amei nenhuma. Ao acordar todas pareciam putas de lábios pintados e sorriso fácil.

É nessa hora que você pensa ter descoberto o meu lado mais podre, ledo engano. Eu sou um escroto, você diria aos seus filhos que sou má-companhia e detestaria me ter como genro. Uma mulher diferente por semana, mulher não, um troféu diferente por semana, um punhado de dinheiro na carteira, um carro do emprestado da minha tia, e eu nem tinha idade para dirigir. Eu era um escroto e era um escroto feliz pra caralho.

Talvez o título de inconseqüente, idiota, playboy, caiam bem para tudo aquilo, e eu era mesmo. Mudei é verdade, infelizmente, não foi pra muito melhor, pelo menos é o que vocês vão dizer.

Com dezessete eu passei no vestibular, Direito, fácil, não vou negar que era vagabundo, mas sempre fui inteligente, ou eu assim pensava, e nem um pouco modesto. Era tudo o que eu queria, faculdade pública e mais mulheres. Acho que foi mais ou menos nessa idade que eu li meu primeiro livro. Sim, eu tenho vergonha disso e você não precisa me lembrar. Crime e Castigo, do Dostoievski. Eu li porque uma menina da minha sala, muito bonita por sinal, disse que era seu livro favorito. Foi ai que tudo começou a mudar.

Por dias eu me senti como o Raskolnikóv, depois foi Holden Caulfield, Hamlet e Yorick, pensei em suicídio com o Werther e pactos diabólicos com o Fausto, fui Bentinho e amei a Capitu. Quantas certas manhãs eu não acordei de sonhos intranqüilos e achei que era o Gregor Samsa? Inúmeras. E essa foi a minha culpa. Era tão bom ser ignorante, até tentei voltar atrás e,quem sabe, contentar-me apenas com mulheres para exibir, um carro e ficar bêbado, tenho que admitir que ficar bêbado ainda é uma coisa que eu faço bem.

Saí de direito, fiz letras e jornalismo, queria ser igual àqueles que haviam destruído minha felicidade, mas tinham me dado uma vida. Com 21 arrumei um emprego e mudei para o único lugar que podia ser mais escroto do que eu, Avenida Liberdade, na frente do cemitério, logo depois do presídio.

Pensar é uma coisa escrota, você pensa que sabe como é que funciona, ai, sem querer, você esbarra com um pensamento e nada mais é como era antes, compreender o mundo é uma sacanagem, como aquela que faziam com o preto, pobre, filho de zelador. Hoje tenho inveja dele, não pelo que ele tinha, mas pelo que ele passou, sem nunca se curvar a babaquice de meus colegas, ou melhor, ex-colegas, há tempo que não vejo um deles, ainda bem, as últimas notícias que eu tive era que um tinha engravidado a namorada de quinze anos e um outro tinha conseguido ser preso por traficar droga. A única coisa que me incomoda sobre aquelas pessoas são as desculpas que devo a algumas daquelas garotas com quem dormi. Nunca dei valor a elas, e ainda hoje, eu acho, não dou. Se desse teria procurado por elas.

Já fui um babaca, um grande de um cínico, um sacana, com os outros. Hoje só sou assim comigo mesmo e com uns ou outros que me lêem. A diferença, a única diferença verdadeira, é que hoje, eu lembro da Letícia, depois de ter cortado os pulsos, havia em seus olhos mil pedidos de desculpas e uma súplica inexplicável por socorro. Eu só queria ter tido coragem de acompanhá-la.

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